quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O segredo de Michelangelo

Estudo revela que mestre do Renascimento sofria de severa artrite na velhice, período em que produziu obras-primas

Raul Montenegro (raul.montenegro@istoe.com.br)
As autoridades da Igreja da Santa Cruz, em Florença, onde está enterrado o corpo do artista renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-1564), nunca permitiram que os restos mortais do mestre das esculturas fossem analisados pela ciência. Pesquisadores italianos e australianos, no entanto, descobriram em fevereiro uma forma de driblar a proibição para desvendar o segredo das mãos que criaram algumas das maiores obras de arte de todos os tempos, como a estátua de Davi e os afrescos da Capela Sistina, no Vaticano. Analisando pinturas e cartas, eles revelaram que em seus últimos 15 anos de vida Michelangelo sofria fortes dores nos dedos decorrentes de uma artrite degenerativa conhecida como osteoartrite. Apesar disso, o artista criou neste período obras-primas como a Pietà de Florença e os projetos da Basílica de São Pedro, a sede do catolicismo no mundo. “O diagnóstico oferece uma explicação plausível para a perda de destreza de Michelangelo na velhice, enfatizando seu triunfo sobre a enfermidade”,escreveram os responsáveis pelo estudo em artigo publicado no periódico científico “Journal of the Royal Society of Medicine”.
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DESCOBERTA
Michelangelo (acima) e as pinturas que permitiram ver que ele tinha artrite nas mãos (abaixo)
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A pesquisa comparou retratos de Michelangelo quando novo, feitos por Rafael Sanzio (1483-1520) e por ele mesmo, com três obras que mostram -no entre 60 e 65 anos. Os acadêmicos concluíram que a mão esquerda do artista não tinha sinais de artrite na juventude, mas que a doença estava instalada, em estágio avançado, na velhice. O mal acometeu principalmente seu polegar e indicador e pode ter sido acelerado pelas constantes marteladas e entalhes. “As deformações nas mãos são lesões típicas de degenerações de ossos e cartilagens causadas por traumas frequentes ao esculpir”, disse à ISTOÉ o cirurgião plástico Davide Lazzeri, que chefiou o estudo. “Os sintomas são enrijecimento e dores.”
A equipe de Lazzeri analisou ainda correspondências de Michelangelo nas quais ele reclamava de dores nas mãos e em outras articulações. Em 1552, a artrite causava desconforto quando o mestre escrevia. Em 1563, a doença havia se tornado tão severa que ele apenas assinava suas cartas. “Se acometer articulações que fazem o movimento de pinça dos dedos, você tem dificuldades para pegar numa caneta ou cortar um bife”, afirma José Goldenberg, reumatologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Imagine para um artista.” Mesmo assim, continuou desenhando e esculpindo até o fim, aos 88 anos, às vésperas de seu 89º aniversário. “O trabalho foi a salvação e a causa das mãos doentes de Michelangelo, que continuou em ação até seis dias antes da sua morte”, diz Lazzeri.
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HABILIDADE
A Pietà de Florença, uma das maravilhas que o mestre realizou apesar da dor que sentia
Apesar de suas obras mais famosas terem sido feitas entre os 20 e os 40 anos de idade, o próprio artista costumava dizer que “ninguém pode ser considerado um mestre antes do fim de sua arte e de sua vida”. Debilitado pela osteoartrite, criou obras-primas como uma série de Pietàs, incluindo a de Florença (na foto), e os desenhos da Catedral de São Pedro, em Roma, além de várias outras esculturas, pinturas e projetos arquitetônicos. Professor de história da arte da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo (Masp) entre 1995 e 1997, Luiz Cesar Marques Filho considera que em sua fase final Michelangelo usava muito a técnica “non finito”, um gosto pelo esboço comum a vários gênios que se libertam da execução pormenorizada em favor da elaboração da ideia. “Não acredito que isso se deva à artrite e até diria que as obras da velhice são as mais interessantes”, afirma.
Hoje, a osteoartrite é uma aflição que atinge 9,6% dos homens e 18% das mulheres acima de 60 anos no mundo, com 80% sofrendo limitações de movimentos e 25% impossibilitados de fazer atividades cotidianas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A realização de atividade física repetitiva por mais de 10 anos aumenta o risco em 9,3 vezes. Michelangelo entrou para as estatísticas dessa e de outras doenças, como atestam diversas pesquisas (leia quadro). Sua personalidade obsessiva, reclusa e antissocial fez com que se levantasse a hipótese de que fosse portador da síndrome de Asperger, uma forma de autismo, mas historiadores ainda especulam que ele possa ter sido contaminado por chumbo, uma enfermidade comum a pintores por causa do contato constante com tintas. A intoxicação às vezes carrega sintomas psicológicos, como a depressão, e também pode explicar o comportamento do mestre. Daqui para frente, a equipe quer confirmar as conclusões diretamente no cadáver de Michelangelo. Eles pressionarão as autoridades italianas para exumar o corpo e conduzir exames nos restos mortais. “A descoberta vai aumentar o interesse sobre a evolução da produção do artista ao longo de sua carreira”, afirma Lazzeri.
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FOTO: Marie-Lan Nguyen

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